Published June 4, 2025
Categories: Intervenções

Moçambique, um país onde o preconceito ainda molda realidades, mulheres com deficiência enfrentam uma luta silenciosa contra barreiras físicas, psicológicas, sociais e culturais.

Ancha Ndala, de 30 anos de idade é casada, mãe de três meninas e vive com deficiência psicossocial, uma condição muitas vezes invisível aos olhos dos outros, mas profundamente presente na sua vida. A ausência de sinais físicos da deficiência leva muitos a questionarem sua legitimidade. “As pessoas olham para mim e dizem: Mas não parece que tens deficiência’’, e é aí onde tudo começa. O não reconhecimento é o primeiro passo para a marginalização. Ancha acrescenta que mulheres com deficiência psicossocial enfrentam vários tipos de discriminação: ‘‘por serem mulheres, por terem uma deficiência e por esta deficiência ser considerada de foro mental”.

De acordo com os dados do ultimo Censo Nacional de 2017, Moçambique possui aproximadamente 727.620 pessoas com deficiência, o que representa cerca de 2,6% da população total. Dessas, 355.559 são mulheres. Entretanto, estes dados são amplamente criticados, em parte, por estarem distante das projecções feitas pela OMS segundo as quais 16% da população, sobretudo de países em desenvolvimento, tem alguma forma de deficiência. Este facto coloca em causa os métodos usados para a recolha de dados nos censos populacionais no país.

Timóteo Bene, Oficial de Políticas e Pesquisa do Fórum das Associações Moçambicanas de Pessoas com Deficiência – FAMOD, entende que de um modo geral, as mulheres com deficiência sofrem múltiplas discriminações. “As mulheres com deficiência têm limitada educação formal e falta de literacia digital, situação que contribui para a sua exclusão em vários fóruns. Questões associadas as atitudes, a acessibilidade dos espaços físicos e de comunicação também constituem barreiras para as mulheres com deficiência.”

Para o Oficial de Políticas e Pesquisas do FAMOD, ‘‘em termos estruturais, faltam políticas que promovam a inclusão, representação e participação de mulheres com deficiência não apenas em fóruns de tomada de decisão, mas no acesso as oportunidades necessárias para o seu desenvolvimento.” – completou.

Além disso, os serviços de saúde, especialmente os de saúde sexual e reprodutiva, carecem de sensibilidade e preparo. “Ainda não temos psicólogos suficientes, nem hospitais preparados para nos atender com dignidade. E quando se fala de saúde mental, a resposta padrão é medicação sem diagnóstico aprofundado, sem empatia, e sem escuta”, explica Acha Ndala.

Eufémia Amela, Presidente do Conselho de Direção da Associação Moçambicana das Mulheres com Deficiência (AMMD), refere que a verdadeira limitação não está apenas na falta de acessibilidade, mas nas barreiras invisíveis impostas pelo preconceito, e negação dos seus direitos “por serem mulheres, são consideradas frágeis e limitadas ao espaço doméstico. E, por serem pessoas com deficiência, são frequentemente vistas como incapazes de exercer maternidade, sexualidade ou qualquer papel produtivo na sociedade.”

A fala da presidente ressoa como um eco de centenas de relatos que chegam à AMMD. Segundo a fonte, elas são muitas vezes questionadas: “Como pode uma mulher com deficiência ser mãe? Quem vai cuidar da criança?” e em muitas regiões “Elas não têm acesso a transporte adequado, enfrentam barreiras arquitetónicas em edifícios públicos, e os serviços de saúde não estão preparados para recebê-las com dignidade” – acrescenta.

Apesar das várias barreiras e diante desse cenário tão desafiador, Ancha Ndala, actual vice-presidente do FAMOD, procura ao lado de outras mulheres com deficiência e organizações, liderar campanhas de sensibilização em comunidades, escolas e instituições públicas.

Por outro lado, a AMMD em parceria com outras organizações femininas e de direitos humanos, promove acções de capacitação jurídica, oficinas de empoderamento social e acesso a microfinanciamento para projectos de geração de renda.

“Queremos que elas conheçam os seus direitos e saibam onde e como reclamar. Muitas vezes, só isso já transforma uma vida,” realçou a presidente. A associação também acompanha casos de violência, orientando e encaminhando as vítimas às instituições competentes.

A urgência de um novo olhar

O Estado Moçambicano ratificou em 2012 a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e comprometeu-se a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência sem qualquer discriminação com base na deficiência.

Este foi apenas o início de uma luta que recentemente culminou com a aprovação da Lei de Promoção e Proteção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Lei n.º 10/2024), que trouxe avanços. Contudo, carece ainda de um quadro de regulamentação.

‘‘A aprovação dessa lei representa um marco significativo, entretanto, a materialização destes direitos passa pela regulamentação da Lei, estabelecendo acções específicas e actores responsáveis pela sua implementação’’ frisou Timóteo Bene.

Flora Quembo, coordenadora da Unidade de Proteção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Comissão Nacional de Direitos Humanos, também reconhece os desafios que persistem para implementação efectiva dessa lei e assegura que existem mecanismos e instrumentos legais que a instituição tem utilizado para oferecer o apoio jurídico, psicológico e social às mulheres com deficiência vítimas de violência, garantindo um atendimento especializado.

‘‘Um dos principais instrumentos é o Mecanismo Multissetorial de Atendimento Integrado às Vítimas de Violência, que opera por meio dos Centros de Atendimento Integrado. Além disso, a legislação moçambicana reconhece a Violência Baseada no Género como uma violação dos direitos fundamentais, aplicáveis também às mulheres com deficiência, o que exige acções coordenadas entre Governo, sociedade civil e parceiros internacionais’’.

Para melhorar as condições de vida das mulheres com deficiência em Moçambique, são necessárias mudanças estruturais. destaca Bene,“é necessário incorporar a deficiência em todos os sectores como a educação, saúde, especialmente no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva”

Por sua vez, Flora Quembo, reforça a necessidade de haver mudanças legais. “É preciso harmonizar as leis nacionais com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, criminalizar especificamente os abusos contra mulheres com deficiência, e garantir capacidade legal plena nos processos civis e familiares. Também é urgente rever dispositivos legais que ainda utilizam o termo ‘pessoa portadora de deficiência’, bem como modificar a alínea b) do artigo 32 da Lei da Família, que proíbe o casamento de mulheres com deficiência psicossocial”.

A história de Ancha Ndala é apenas uma entre milhares. Mulheres com deficiência continuam sendo silenciadas por leis que as consideram incapazes, por sistemas que as ignoram e por uma sociedade que ainda prefere esconder o que não compreende. Mas essas mulheres estão a ganhar voz, estão a se organizar e estão cada vez mais a exigir visibilidade, respeito e, acima de tudo, humanidade.