Published June 17, 2025
Categories: Intervenções

“Ele não anda, não fala, mas entende tudo. É meu filho, tudo que eu mais quero é que ele seja tratado como uma pessoa normal”.

As palavras de Gil Chilaule, pai e cuidador de uma criança com paralisia cerebral, resumem a luta diária de muitas famílias moçambicanas que convivem com essa condição, num país onde a deficiência ainda é frequentemente associada a feitiçaria, maldição ou punição espiritual, o peso do estigma cultural se soma aos já imensos desafios médicos e sociais enfrentados por essas famílias.

A paralisia cerebral é um conjunto de perturbações neurológicas permanentes que afectam a mobilidade, o tônus muscular e a postura. Trata-se de uma lesão no cérebro em desenvolvimento, geralmente causada durante a gestação, o parto ou nos primeiros meses de vida. A neurologista no Hospital Provincial da Matola, Yanina Baduro, reforça que se trata de uma condição médica, não de uma doença contagiosa, muito menos de uma maldição. Entre as causas mais comuns estão infecções congênitas como toxoplasmose e rubéola, asfixia neonatal, hemorragias cerebrais em prematuros, icterícia grave e até malária cerebral, esta última ainda muito prevalente em regiões endêmicas do país.

Apesar dos sinais poderem surgir nos primeiros anos de vida, como rigidez muscular, flacidez, dificuldade de controle da cabeça e atraso em marcos do desenvolvimento, o diagnóstico costuma ser tardio. A demora é agravada tanto pela escassez de serviços especializados quanto por barreiras culturais profundas. “Infelizmente essa realidade é comum. Muitas famílias, sobretudo em comunidades com forte tradição cultural, recorrem primeiro aos curandeiros ou líderes religiosos antes de buscarem ajuda médica”, conta a médica, relatando casos em que as crianças passaram anos submetidas a práticas espirituais antes de serem finalmente levadas a um hospital.

O fisioterapeuta no Hospital Geral José Macamo, Filipe Jorge, confirma essa situação. “Já atendi casos em que as famílias acreditavam que a condição da criança era resultado de feitiçaria. Em um deles, a criança era mantida escondida por vergonha e medo da opinião da comunidade”. 

Gil Chilaule compartilha uma vivência semelhante, “no início foi muito difícil. Fomos a várias igrejas, curandeiros, fizemos de tudo. Só depois levamos o miúdo ao hospital”.

Essa procura por soluções espirituais não é, necessariamente, fruto de ignorância. Muitas vezes é um reflexo do desespero, da falta de informação e do desejo de ver o filho curado. “A esperança de um milagre faz parte da dor dos pais. Eles se apegam a qualquer possibilidade quando veem o sofrimento de um filho”, afirma Baduro.

O diagnóstico precoce é fundamental para iniciar a reabilitação o quanto antes. O tratamento não reverte a condição, mas ajuda a reduzir a espasticidade (rigidez muscular), prevenir deformações físicas e promover maior autonomia. No entanto, o sistema público de saúde ainda é extremamente limitado. “Temos poucos centros de reabilitação, e os que existem estão mal equipados. Muitos pais não têm dinheiro nem para o transporte até à cidade”, lamenta Filipe Jorge.

Diante dessas limitações, os profissionais defendem soluções comunitárias. Sessões informativas em línguas locais, uso de rádio comunitária, envolvimento de líderes religiosos e visitas domiciliares têm se mostrado estratégias eficazes. “Se um pastor ou ancião diz que a criança precisa de fisioterapia e amor, a mensagem é mais bem-recebida do que quando vem apenas do médico”, explica Baduro. Ela destaca ainda o papel dos grupos de apoio entre cuidadores, “ninguém entende melhor a dor de um pai do que outro pai na mesma situação. Esses grupos viram espaços de partilha e empoderamento”.

Apesar dos desafios, há histórias que inspiram e rompem barreiras. Delfina Nhantumbo, de 33 anos, nasceu com paralisia cerebral, mas nunca deixou que isso limitasse seus sonhos. É jornalista formada, estudante universitária, ativista social, empreendedora e estagiária no Programa Mundial de Alimentação das Nações Unidas. “Tenho paralisia cerebral, mas isso não me impede de sonhar, estudar, rir ou amar. A minha deficiência é nata, por isso, nunca tive de recorrer a nenhuma magia em busca de cura. Sou feliz do meu jeito”.

Delfina encontrou na sua família um apoio incondicional. “Meus pais, irmãos e tios sempre me trataram com amor, respeito e confiança. Isso fez toda a diferença na minha vida”. Mas o apoio familiar não anula as dificuldades enfrentadas no seu dia a dia. “Por onde passo, vejo que chamo atenção pela forma como me locomovo, a maneira de falar e ate de manusear as coisas. Assim sendo, as pessoas deixam o que estão a fazer para procurar entender como faço as minhas actividades cotidianas”.

Ela conta que foi ao hospital para cuidar da sua saúde sexual e reprodutiva e passou por uma situação constrangedora, “Perguntaram se eu fazia sexo e como cheguei sozinha ao hospital sendo pequena. Tive o constrangimento de ser atendida por vários medicos, porque foram se chamando para ver aquela menina com deficiência que teve a coragem de ir cuidar da sua saúde sexual”. Na escola, o desafio continuou. “Não consigo escrever com esferográfica por causa da tremedeira nas mãos. Minha caligrafia não é legível, e isso me fez repetir várias classes”. Já na universidade, teve que mudar de curso devido às dificuldades de fala e escrita. Hoje estuda Educação e Assistência Social, e enquanto aprende, também ensina seus professores a entenderem suas necessidades como estudante com deficiência.

A experiência de Delfina Nhantumbo é um exemplo potente de superação, mas também de como a sociedade ainda subestima as capacidades das pessoas com paralisia cerebral. A transformação desse cenário passa, inevitavelmente, pela educação, pela quebra do silêncio e pela valorização da diversidade.

A paralisia cerebral não tem cura. Mas quando há informação, apoio, tratamento e empatia, há também vida com dignidade. Mudar a forma como a sociedade vê a deficiência é tão importante quanto o acesso ao cuidado médico. Essas pessoas não são feitiços nem punições, são cidadãos com direitos, com sentimentos e com sonhos e merecem ser tratadas assim.