Milhares de crianças moçambicanas trocam a escola pelo trabalho doméstica e o comércio ambulante nas ruas das cidades, vítimas de promessas de uma vida melhor e da indiferença social à exploração infantil.
Em Moçambique, a pobreza extrema nas zonas rurais leva muitas famílias a enviar seus filhos para as cidades com promessas de estudos e uma vida melhor. No entanto, muitas dessas crianças acabam trabalhando como babás ou vendedoras ambulantes, comprometendo seus direitos à infância, educação e protecção contra a exploração.
“Saí da minha aldeia para estudar, mas hoje cuido de três crianças.” A confissão de Amina de apenas 16 anos, reflecte a realidade de centenas de meninas que saem das zonas rurais de Moçambique para trabalhar como babás nas casas urbanas. Em vez de cadernos, carregam crianças no colo. No lugar do recreio, lidam com panelas e vassouras.
Enquanto isso, nas ruas movimentadas de Maputo, rapazes como Manuel, de 13 anos, equilibram caixas de rebuçados, chocolates, ovos cozidos e bolachas sobre a cabeça, perseguindo carros nos semáforos. Em comum, ambos perderam a infância para o trabalho.
“Disseram à minha mãe que eu ia estudar em Maputo. Cheguei aqui e me mandaram cuidar de bebês, limpar casa e cozinhar”, relata Amina, que vive com uma família no bairro de Benfica Ela começa o dia às cinco da manhã e termina por volta das 22 horas. Seu pagamento? Raros 1.500 meticais por mês, quando recebe.
A promessa que nunca se cumpre
Nos distritos como Mandjacaze, Magude e Chókwé, é comum famílias permitirem que parentes ou conhecidos levem seus filhos para as cidades, na expectativa de dar continuidade aos seus estudos e tenham melhor qualidade de vida. O que se segue, no entanto, é muitas vezes uma forma moderna de servidão.
Para Manuel, que deixou a escola para vender água no Mercado do Benfica, os riscos são visíveis. “Já fui atropelado uma vez. Às vezes as pessoas me batem quando eu peço muito dinheiro. Mas preciso ajudar em casa”, conta ele, com uma maturidade precoce e os pés descalços no asfalto.
Essas crianças raramente são registadas nas estatísticas oficiais, pois o trabalho doméstico infantil, por ser realizado no interior das casas, permanece invisível. No comércio informal, por sua vez, o problema é tão comum que se tornou parte da paisagem urbana.
Os direitos esquecidos
Segundo Isabel Mbanze, advogada, activista social para a defesa direitos da criança, a situação é uma grave violação dos direitos criança e humanos, no geral. “Moçambique é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança. Nenhuma criança deveria trabalhar em condições perigosas, nem ser privada da educação. O que vemos hoje é uma aceitação social da exploração”– denuncia.
A advogada explica que o trabalho infantil doméstico é particularmente grave, pois envolve isolamento, jornadas longas, abusos físicos e, por vezes, violência sexual. A maioria dessas crianças não frequenta a escola, perde vínculos familiares e enfrenta traumas emocionais duradouros.
Impacto no desenvolvimento psicológico
A psicóloga clínica Helena Nhantumbo, do Hospital Central de Maputo, afirma que essas crianças crescem com marcas profundas. “Elas desenvolvem ansiedade, depressão, baixa autoestima e, muitas vezes, transtorno de estresse pós-traumático. O pior é que crescem achando que isso é normal, porque ninguém lhes mostra o contrário.” Segundo a fonte, os impactos vão além do indivíduo. “Uma geração de crianças traumatizadas e sem escolaridade compromete o futuro do país.”
Uma questão estrutural
Para o sociólogo Ernesto Mugabe, da Universidade Pedagógica de Maputo o problema é estrutural e envolve três factores principais: pobreza, fragilidade institucional e normalização cultural. “As famílias não vêem alternativa. Muitas vezes, entregam os filhos a outros por desespero. E como o Estado não chega às zonas rurais com políticas eficazes de protecção social, saúde e educação, o ciclo se repete,” afirma. Mugabe também critica a pouca fiscalização das condições de trabalho infantil doméstico: “Falta uma presença ativa do Estado. Precisamos de campanhas comunitárias, empoderamento econômico das famílias e mecanismos de denúncia acessíveis.”
Um ciclo que pode ser quebrado
Apesar do cenário preocupante, há caminhos possíveis. Organizações como Save the Children, FDC e UNICEF vêm implementando projectos de reintegração escolar, capacitação de famílias e sensibilização sobre os direitos da criança. Mas o desafio permanece enorme. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, INE, mais de 22% das crianças moçambicanas entre 5 e 17 anos trabalham. Em zonas como a província da Zambézia e de Nampula, esse número é ainda maior.
O direito de ser criança
Amina sonha em ser enfermeira. Manuel quer ser motorista de chapa. Seus sonhos persistem, apesar da realidade que enfrentam todos os dias.
Enquanto a sociedade aceitar que crianças trabalhem como adultos, o futuro de Moçambique permanecerá preso ao presente. Libertar essas infâncias roubadas exige mais do que discursos requer acção, investimento e empatia.