Celebra-se, hoje, 04 de Outubro, o Dia da Paz e Reconciliação Nacional, uma data que marca a assinatura, em 1992, em Roma, Itália, do Acordo Geral de Paz, entre o Governo da Frelimo e a Guerrilha da Renamo. Nesta sexta-feira, passam exactos 32 anos após o histórico acordo que colocou fim a 16 anos de guerra civil, em Moçambique. Para falar da data, na perspectiva de Direitos Humanos, e equipa editorial deste HUB foi conversar com o Director do Programa IGUAL, um projecto de promoção dos Direitos Humanos e Democracia, implementado pelo CESC (Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil) e financiado pela Embaixada do Reino dos Países Baixos. O objectivo da entrevista com Domingos do Rosário era discutir o nexo entre a paz e os Direitos Humanos. Sobre isso, Domingos do Rosário é peremptório: “não há Direitos Humanos sem Paz”, afirma. Do Rosário, que também é cientista político e docente da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), defende que, no contexto de Moçambique, há violação de Direitos Humanos praticamente todos os dias. Siga, abaixo, os excertos editados da entrevista com o Director do Programa IGUAL.
Qual é a importância da paz para os Direitos Humanos, e por que os Direitos Humanos precisam da paz?
Num país sem paz, temos todo o tipo de conflitos. Uma das grandes consequências da falta de paz são as disparidades, a nível económico, social e político. Há um conjunto de Direitos Fundamentais das pessoas que não são respeitados, sobretudo em contexto de guerra como o que Moçambique se encontra agora. Há dois contextos ligados à falta de paz, em Moçambique. Fala-se tanto que temos reconciliação nacional, mas a reconciliação nacional é apenas em palavras. Mas sem actos, não há reconciliação nacional. A partir da altura em que não há reconciliação nacional, também haverá ódio, vingança e, directa ou indirectamente, isso vai se reflectir na questão da paz. A situação actual de conflito, em Cabo Delgado, é que é pior ainda. Quando há guerra, os Direitos Humanos têm sido mais negligenciados, ainda. São crianças, pessoas adultas, são jovens, somos nós, todo Moçambique agora está em guerra, na verdade. A paz é sinónimo de Direitos Humanos, a todos os níveis. Portanto, não há Direitos Humanos sem paz.
Olhando para o contexto moçambicano, no geral, e na sua qualidade de Professor de Ciência Política, como vê a relação entre a paz e Direitos Humanos, especialmente no contexto histórico dos conflitos entre a Renamo e a Frelimo e o actual conflito em Cabo Delgado?
Numa situação como de Moçambique, de conflito, nós temos violação de Direitos Humanos todos os dias. Todos os direitos, principalmente os direitos fundamentais, da maior parte da população, são violados. As pessoas não têm acesso à alimentação, não têm acesso a saúde, à educação (…) quando se diz que têm acesso à educação, é uma educação de muito má qualidade. Mas também agora com as eleições, estamos a ver muitos jovens e muitas crianças que ficam sem os professores, que abandonam para participar em campanhas eleitorais de certos partidos políticos. Estamos a tirar os poucos direitos de educação que as crianças têm, com o desvio dos professores para actividades de campanhas de certos partidos políticos.
“Um Estado criminoso”
Como Director de um programa de Direitos Humanos, o Programa IGUAL, como vê os abusos cometidos pelo Estado, através das Forças de Defesa e Segurança, contra civis, em Cabo Delgado, conforme demonstram vários relatórios?
Primeiro é preciso dizer que num conflito ninguém respeita Direitos Humanos. Isso deve estar claro. Mas aí a maior responsabilidade está com o Estado. O Estado Moçambicano assinou convenções sobre Direitos Humanos e deve respeitá-las. É possível o Estado respeitar os Direitos Humanos. As Forças de Defesa e Segurança não são republicanas. Temos um Exército desfeito. Temos corrupção generalizada até nas promoções para as chefias militares. As promoções são feitas de acordo com critérios clientelistas. Não há disciplina militar, não há nada. Aquilo é um bando de “criminosos”, posso assim dizer, que está coberto por um Estado também “criminoso”. O que esperar do Exército? Um Estado criminoso tem de ter também um Exército criminoso. Em tempo de guerra é difícil respeitar os Direitos Humanos, mas é possível, com um Exército republicano, minimizar as violações,
evitar ou minimizar, ao máximo, o abuso dos Direitos Humano. Mas com um Exército como o nosso, não. Em Cabo Delgado, as populações, sobretudo as jovens raparigas, quando veem o Exército moçambicano fogem, mas quando veem o Exército ruandês vão dar a mão. Não devia ser o contrário? O Exército é o orgulho nacional, e um Exército que afugenta seu povo, mostra em parte o tipo de país que temos….Isso significa a desestruturação do país e, directa ou indirectamente, é o que explica a situação em que estão os Direitos Humanos no país.
Acha que Moçambique é um país respeitador de Direitos Humanos?
Nem tão pouco! Moçambique é um dos piores países em termos de violação dos Direitos Humanos. Quando você vê os relatórios sobre Direitos Humanos divulgados pelas agências internacionais e que discutem a questão do respeito dos Direitos Humanos, mostram que Moçambique é um dos piores. Moçambique não respeita os Direitos Humanos. Vejam as eleições, que deveriam ser, em contextos normais, um mecanismo de respeito aos Direitos Humanos, no sentido de que são o momento em que as pessoas deviam usufruir do direito de livre escolha dos seus representantes, mas aqui em Moçambique, se tornaram num mecanismo de violação de Direitos Humano, com as Forças de Defesa e Segurança na vanguarda (….) a bater observadores, a bater elementos da população, a deter delegados de candidatura, a deter e “punir” nossos jovens quando estão a manifestar-se, pacificamente, em protecto contra as “fraudes eleitorais”. A Polícia, os partidos políticos, violam os Direitos de livre escolha dos Moçambicanos. Então, como é que nós podemos dizer que Moçambique é um país de Direitos Humanos?
“A paz e reconciliação não é jogo de palavras”
Uma das condições para o respeito dos Direitos Humanos é a paz. Como estancar as causas dos conflitos, em Moçambique? Como podemos fazer com que os moçambicanos parem de recorrer à violência para a resolução dos seus problemas? Moçambique é, estruturalmente, um país de conflito, um país de guerra. Desde as guerras dos Estados militares do Vale de Zambeze; os Estados Afro Islâmicos da Costa, uma transição violenta. Depois disso, em 1924, o Estado Novo; depois, em 1964, começa a luta anti-colonial; quando termina a luta anti-colonial, começa a guerra da Renamo; depois temos a segunda guerra da Renamo e; agora, temos a de Cabo Delgado. Historicamente, Moçambique é um país de conflito. Então, quando nós dizemos, nos últimos anos que há paz, há reconciliação, até transformamos o dia 4 de Outubro em Dia da Paz da Reconciliação (…) queremos dizer o quê com isso? A paz e reconciliação não é uma questão de jogo de palavras. O que é que está por detrás da revolta dos jovens, hoje? Os seus direitos foram coartados. Não têm direito a emprego, não têm direito a educação, não têm direito a salas de aulas; não têm direito a professores, muito menos a manuais (…) e sem manuais e professores, que educação teremos? Que tipo de jovens vamos educar?
Estas multinacionais estão a explorar os recursos em conluio com o poder político institucionalizado e não resta nada para os jovens. O que as pessoas vão fazer? As pessoas têm de ir atrás e, como por vias institucionalizadas não têm como, recorrem à violência para reclamar seus direitos coartados por um Estado criminoso. Então, é preciso que o discurso sobre a paz também seja materializado.
Acha que a má governação, a corrupção e a exclusão política, económica e social estão alimentando os conflitos, em Moçambique?
Sim, claramente, não há dúvida nenhuma. Quando eu chamo Estado criminoso, estou a falar dessas coisas todas, de um Estado que não olha para o cidadão, um Estado corrupto, um Estado capturado pelas elites em conluio com o capital “internacional”; um Estado sem regras no seu verdadeiro sentido; um Estado que não respeita a sua população. Se o Estado não respeita a sua população, não vale nada. Este Estado não serve a sua população, pelo contrário, preda a população. Volto a citar este último relatório, publicado na revista o “Politico”, que mostra que os militares assassinaram e violaram raparigas e mulheres indefesas; assaltaram bancos, etc. Isso significa que está instalada a anarquia. Isso é reflexo de má governação, de um Governo corrupto, um Governo parasita que não serve a população, mas se serve da população para garantir a sobrevivência material de suas elites. Um Estado deve servir a população e não se servir da população. Não haverá nenhum mecanismo de paz e de reconciliação, se as populações, se os jovens não têm nada para comer, não têm escola para estudar, não têm professores da sala de aulas e não tem emprego para trabalhar e garantir meios para a sua sustentação. Boa parte da população moçambicana é constituída por jovens e os mesmos não têm onde trabalhar, não têm o que comer. As multinacionais que estão a operar, em Cabo Delgado, estão a trazer serralheiros da Europa, mas todos os dias estão a ser formados serralheiros, nas escolas de artes e ofícios; nos institutos técnicos espalhados pelo país. Como é que querem que os jovens evoluam? Se tornem capazes? Se podem trabalhar como ajudantes de serralheiros nas grandes multinacionais, porque o serralheiro vem da Europa?