A dor que não se vê
Sammaya Nazir, 22 anos, vive com diabetes há 5 anos. Toma a medicação regularmente, faz o controlo glicémico e tenta manter uma dieta equilibrada. Quando questionada sobre como se sentiu emocionalmente quando descobriu que tinha essa doença, respondeu: “Na fase inicial, a doença mexeu com o meu psicológico, por conta das restrições e pelas mudanças significativas que eu tive. Lembro-me que precisei de um acompanhamento psicológico, para poder aceitar a minha nova condição de vida e saúde.”
Histórias como de Sammaya Nazir multiplicam-se nos centros de saúde, nas clínicas e nos bairros periféricos da capital moçambicana. São histórias de sobrevivência física e de sofrimento silencioso, o psicológico. Em Moçambique, doenças crónicas como HIV, hipertensão, lúpus, asma e diabetes afectam milhares de pessoas todos os anos. Embora o sistema de saúde ofereça alguma resposta clínica, a dimensão emocional e mental dessas doenças segue negligenciada.
O impacto invisível das doenças visíveis
De acordo com a psicóloga clínica Catarina José, o impacto emocional das doenças crónicas é profundo, mas raramente tratado. “Muitos pacientes enfrentam o estigma, o isolamento social, o medo da morte, o cansaço físico e emocional. Acabam por desenvolver quadros de desorientação, ansiedade, depressão, distúrbios do sono e, em alguns casos, pensamentos suicidas. Mas poucos recebem apoio psicológico adequado”, alerta.
Doentes falam: “O corpo recebe atenção, mas a mente é esquecida”
Em visita ao Centro de Saúde do Alto-Maé, a Hub de Direitos Humanos encontrou um jovem que não quis se identificar, vivendo com HIV desde que nasceu. Ele descreve o tratamento como “automático”. “Venho, levo os comprimidos, volto para casa. Ninguém pergunta como estou a sentir-me. Já pensei em desistir do tratamento mais de uma vez. Parece que só querem que estejamos vivos, mas não se importam com como vivemos.”
Aida Muacha 49 anos, vive com lúpus. Conta que sente dores diárias e que perdeu o emprego por faltas recorrentes. “As pessoas acham que é frescura. Até na família. Não tenho com quem desabafar. O corpo dói, mas a tristeza é o pior”
Memorias de quem perdeu um familiar para a asma
“Ainda ouço a respiração dele nas noites frias. Era como um sussurro desesperado, tentando agarrar o ar.”
Estas palavras de Salomé Bata, que perdeu o irmão mais novo para uma crise de asma, reflectem a luta constante que muitas pessoas em Moçambique enfrentam ao tentar respirar com a doença.
David Bata tinha apenas 14 anos quando uma crise de asma tirou a sua vida em 2023. Segundo conta sua irmã, Salomé Bata, naquele dia, a poeira proveniente das obras na casa as temperaturas altas agravaram ainda mais a situação. “Estávamos em obras em casa, e a poeira estava por toda parte. Com o calor intenso, ele começou a ter dificuldades para respirar durante a noite, levamos ele para o centro de saúde da Machava mas infelizmente com a demora no atendimento meu irmãozinho não resistiu.”
Ela recorda como se fosse ontem. “Era um miúdo cheio de vida, apaixonado por futebol, mas, quando as crises de asma vinham ele ficava totalmente debilitado, mesmo a medicação que dávamos parecia não aliviar a dor que ele sentia”.
O que dizem os dados?
Segundo o Ministério da Saúde (MISAU), estima-se que mais de 2 milhões de moçambicanos vivam com pelo menos uma doença crônica. No entanto, o país conta com menos de 200 psicólogos clínicos registados e um número ainda menor em exercício activo nos serviços públicos. A maioria está concentrada em Maputo, Beira e Nampula.
O Plano Estratégico Nacional para a Saúde Mental 2021–2025 propõe a ampliação da cobertura de serviços psicológicos e a formação de técnicos de saúde em primeiros socorros emocionais, mas a implementação segue lenta, condicionada por falta de orçamento e recursos humanos.
Associação Hixikanwe: “Fazemos o que podemos, mas é pouco diante da dor”
A Associação Hixikanwe, que presta apoio a pessoas infectadas com HIV, bem como os seus familiares, confirma o cenário preocupante. Em entrevista, a coordenadora e psicóloga clínica da Associação Ressina Nhumaio afirma que embora existam acções comunitárias, como grupos de apoio e aconselhamento básico, a estrutura psicológica do atendimento ainda é frágil.
“O Estado não prioriza o apoio mental. Nós tentamos preencher essa lacuna com recursos limitados. Muitos dos nossos membros relatam sentir-se abandonados emocionalmente. O estigma ainda é forte, principalmente entre jovens e mulheres” – afirma Ressina
Violações de direitos fundamentais
Para o jurista Lírio Nhacete, o cenário representa uma falha clara do Estado. “A Constituição moçambicana é clara: todos têm direito à saúde, o que inclui saúde mental. Quando o Estado não garante esse direito, está a violar um princípio constitucional. O apoio psicossocial não é luxo, é necessidade básica.”
Ele aponta também a omissão como um factor de discriminação estrutural. “Os doentes crônicos tornam-se duplamente marginalizados: pela doença e pela falta de acolhimento emocional.”
Leia o relatório completo em:
https://ins.gov.mz/wp-content/uploads/2025/04/RELAToRIO-NACIONAL-InCRoNICA.pdf