O MISA Moçambique lança, hoje, 03 de Maio de 2021, o seu relatório bienal sobre o estado das liberdades de Imprensa em Moçambique, que retrata o ambiente hostil às Liberdades de Expressão e de Imprensa em 2019 e 2020. O relatório é lançado num contexto sócio político e económico conturbado, que contribuiu para o aumento exponencial dos casos, tendo-se registado, só em 2020, mais de 30 casos, contra 22 registados em 2019.
O aumento das violações, nos dois anos em referência, traduzem-se nas seguintes manifestações:
1. Controlo político e económico dos media
Ocontrolo político nos media do sector público ocorre a partir das nomeações dos seus presidentes de conselho de administração pelo governo e com elevada influência do partido dominante, a FRELIMO. Observa-se, nos programas de debate político na Rádio e Televisão, ausência do pluralismo e equilíbrio, por serem participados por individualidades ligadas ao partido no poder. Nas poucas vezes que membros dos partidos de oposição fazem parte, são estigmatizados. Nas eleições gerais de 2019, os relatórios de monitoria da cobertura eleitoral do MISA Moçambique, Centro de Estudos Interdisciplinares de Comunicação e Sindicato Nacional dos Jornalistas, mostraram como os media do sector público privilegiaram a campanha do partido FRELIMO e dos seus candidatos. Uma vez os media, em Moçambique, estarem altamente dependentes da publicidade e as empresas anunciantes serem detidas maioritariamente por um sector empresarial controlado por agentes ligados ao partido no poder, as restrições de publicidade são a estratégia geralmente usada para este controlo. Além disso, o Estado não oferece qualquer tipo de incentivo ou protecção para a indústria dos media. Os orçamentos dos media públicos, em parte financiados a partir de contratos-programa, são deficitários o que os obriga a concorrem à mesma franja de mercado publicitário com as empresas privadas.
2. Radicalização do discurso político contra a imprensa que reporta sobre a guerra em Cabo Delgado
Os pronunciamentos do presidente do Conselho de Administração da Empresa Nacional de Parques de Ciência e Tecnologia, Julião João Cumbane, no início de 2020, são disso exemplo. Na sua conta pessoal do Facebook, aconselhou às autoridades de Defesa e Segurança de Moçambique e aos serviços de inteligência, a desencadearem “acções enérgicas – mesmo as extra-legais – contra as ‘notícias’ miserabilistas que desmoralizam as Forças de Defesa e Segurança (FDS), que combatem os ataques por procuração nas regiões Norte e Centro de Moçambique”. Esta ideia foi reforçada pelo Presidente da República, Filipe Nyusi, ao refereri-se à alegada “saga de distorção da realidade na divulgação de irrealidades, por alguns órgãos de informação, que ao invés de pautarem pelo profissionalismo, acabam, deliberadamente ou inocentemente, agindo em vantagem dos inimigos ou dos terroristas,” alertando o exército para que estivesse vigilante e pronto para agir, por forma a “não ser denegrida, deliberadamente.” Esta comunicação presidencial foi aplaudida pela Comissão Política da Frelimo, reunida na sessão ordinária, realizada a 02 de Dezembro de 2020. O recém falecido general, Eugénio Mussa, havia também apelado, publicamente, a urgência de se “aniquilar os contra-pátria", acrescentando: "temos de destruí-los, porque não podemos mais continuar com este problema. Há muita gente que pensa que estar em Cabo Delgado e em Mueda particularmente é o fim do mundo, porque anda sendo enganada pelas redes sociais…".
3. O aumento de autoritarismo na perspectiva dos índices globais
Desde 2015, Moçambique tem vindo a decrescer nos principais indicadores da qualidade de democracia, tendo-se tornado, a partir de 2019, um país autoritário, de acordo com Democracy Index (2019). As “dívidas ocultas”, crime organizado, conflitos político-militares, insurgência em Cabo Delgado e as incertezas eleitorais em 2019 são parte dos factores. Em Janeiro de 2019, após o início da campanha “Eu não pago dívidas ocultas”, o Centro de Integridade Pública (CIP) viu suas instalações controladas pela Unidade de Intervenção Rápida (UIR, obrigando as pessoas trajadas de camisetes da referida campanha a despirem e entregar aos agentes da Polícia. Situações como estas só ocorrem em regimes autoritários e de limitação das liberdades de expressão, de reunião e de manifestação. A 07 de Outubro de 2019, a uma semana de eleições, o activista Anastácio Matavel foi assassinato por cinco agentes das forças especiais da Polícia em Xai-Xai, cujas motivações não foram explicadas, em sede do julgamento.
Nestes dois anos, o trabalho dos media foi condicionado, por um lado, pelas Forças de Defesa e Segurança, e por outro lado, pelos terroristas, destacando-se os seguintes casos marcantes:
• Caso Amade 2019: exemplo de uso da máquina da justiça para intimidar, Amade Abubakar foi ilegalmente detido em Macomia, pelas forças armadas, e transferido para o distrito de Mueda, onde foi mantido incomunicável, num quartel militar, durante 264 horas (11 dias), conforme o MISA teve a oportunidade de reportar em ocasiões anteriores. A acusação definitiva, ainda sem evidências, foi deduzida a 09 de Agosto. O MISA foi notificado no dia 10 de Setembro do mesmo ano, tendo, na mesma altura, submetido uma contestação no Tribunal Judicial de Pemba, seguido de um recurso de contestação ao Tribunal Judicial da Província de Cabo Delgado, remetido no dia 26 do mesmo mês. Na mesma ocasião, o MISA solicitou autorização para que o processo fosse analisado pelo Tribunal Superior de Recurso em Nampula. O pedido foi autorizado no dia 20 de Novembro do mesmo ano. Até ao momento, o caso Amade/Germano encontra-se no Tribunal Superior de Recurso de Nampula, a aguardar pelo resultado.
• Desaparecimento de Ibraimo Mbaruco ainda sem esclarecimento: O rapto e o desaparecimento de Ibraimo Mbaruco, jornalista da Rádio Comunitária de Palma, foi o caso que marcou o ano de 2020. Diligências feitas junto das autoridades, nomeadamente da Polícia da República de Moçambique (PRM), do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) e do Ministério Público, não permitiram, até aqui, produzir qualquer esclarecimento sobre o caso Mbaruco. Até ao fecho do relatório desconhecia-se o paradeiro do jornalista.
• Encerramento de quatro rádios comunitárias - O ano passado foi marcado pelo silenciamento da liberdade de imprensa e de expressão, em Cabo Delgado, consubstanciada pelo encerramento de quatro rádios comunitárias (Mocímboa da Praia, Macomia, Tomás Nduda e São Francisco de Assis, em Muidumbe) devido a ataques e ocupações terroristas às sedes daqueles distritos. Se nos casos das Rádios São Francisco de Assis, Tomás Nduda e Macomia, o encerramento resultou da acção dos insurgentes, o mesmo não se pode dizer da Rádio Comunitária de Mocímboa da Praia, que viu seu equipamento recolhido por militares, em Junho de 2020, de acordo com relatos dos colaboradores da emissora. Os jornalistas descrevem o cenário de Cabo Delgado como caótico para o seu trabalho, sendo arriscado exercer o jornalismo, naquela província.
• Restrições do acesso à informação de interesse público em nome do segredo do Estado – O acesso a informação tornou-se mais fechado em Cabo Delgado, sob pretesto de prteservação do Segredo do Estado. Ainda neste período, foi reportada a detenção do jornalista da STV, Izidine Achá, ocorrido, dia 14 de Abril de 2020, na Cidade de Pemba. O jornalista foi detido por militares, cerca das 09:00 horas, e só viria a ser restituído à liberdade por volta das 13:00 horas.
• Incêndio à redacção do semanário Canal de Moçambique – A total destruição da redacção do semanário Canal de Moçambique, por fogo posto, a 23 de Agosto de 2020, por indivíduos desconhecidos, foi pela opinião pública considerado o cúmulo do ódio à Liberdade de Imprensa. Preocupante foi, ainda, a manifesta apatia das autoridades policiais na investigação e esclarecimento do atentado, não havendo, até hoje, nenhuma informação do seguimento do caso.
4. Revisão da lei de imprensa, entre esperança e o medo
entre as principais constatações sobre as quais deve incidir o debate para o seu aprimoramento, destaca-se (i) Ausência de clareza, na proposta, em relação às atribuições da futura Entidade Reguladora para área da comunicação social; (ii) Ausência da garantia de independência do sector público; (iii) categorização, com a necessária clareza, da responsabilidade penal resultante dos actos atentatórios às Liberdades de Imprensa, assumindo-se como “crime contra a liberdade de imprensa”, atribuindo-lhe explicitamente a natureza de crime público.
• Surto de COVID-19 e declaração do estado de emergência - A declaração do Estado de Emergência pelo Governo aumentou o autoritarismo do Estado e os abusos das liberdades de imprensa e de expressão. Na Lei 1/2020 de 31 de Março, a imprensa não foi considerada um serviço essencial, para além de ter sido imposta a obrigatoriedade dos media usarem unicamente fontes oficiais para notícias sobre a Covid-19. Nesse contexto, assistiu-se a situações de abuso de poder e de autoridade, em que jornalistas foram vítimas de violações e detenções arbitrárias, tal como assistiu-se nos casos dos jornalistas Arcénio Sebastião e Jorge Malangaze, ambos repórteres da DW na Beira, e de Omardine Omar, da Carta de Moçambique. Os efeitos econômicos da Covid-19 fizeram-se sentir, inclusivamente, na imprensa. Mais de 3 jornais de referência nacional declararam, no contexto da Covid, a interrupção da distribuição em papel para o digital e a redução e despedimento de parte dos seus colaboradores.
Uma nota dominante em quase todos os casos atentatórios às Liberdades de Imprensa prende-se com o facto de os autores dos crimes permanecerem desconhecidos, o que alimenta a ideia de tratar-se de indivíduos altamente protegidos, cujos actos são superior e cautelosamente preparados.