À medida que recrudescem os ataques armados, em Cabo Delgado, também voltam a subir de tom as ameaças contra jornalistas envolvidos na cobertura do conflito. Uma das ameaças mais recentes foi feita pelo governador da província de Cabo Delgado, Valige Tauabo, no último sábado, 17 de Fevereiro. Falando a jornalistas, momentos após a cerimónia de lançamento das actividades desportivas inseridas no projecto “Desporto para Paz”, na Cidade de Pemba, Valige Tauabo dedicou cerca de dois minutos e meio para fazer ameaças veladas ao trabalho da imprensa, chegando ao extremo de acusar jornalistas de estarem em sintonia e terem acordos com terroristas. Durante a sua intervenção, o governador de Cabo Delgado chegou a acusar a classe jornalística de reconhecer apenas os valores de terroristas em detrimento dos valores da população e das Forças de Defesa e Segurança (FDS).
“(...) notamos que, de vez em quando, as vossas informações são de âmbito muito duvidoso, porque adiantam uma informação que parece que o jornalista está em sintonia com os terroristas. Então, quando as nossas Forças de Defesa e Segurança abortam essa acção antes de acontecer, parece que há uma formatação, do lado dos nossos concidadãos jornalistas, que já estavam formatados e que tinham certeza que essa acção ia acontecer, esquecendo-se que a população, na província, as Forças de Defesa e Segurança, todos nós estamos empenhados para debelar esta situação”, disse o governador, citado pela Zumbo FM, uma emissora baseada em Pemba, capital de Cabo Delgado.
“Então, os nossos queridos jornalistas levam-nos a crer que são formatados pelos terroristas. Então, vocês têm a informação que eles vão estar no sítio tal, às tantas horas e não importa, antes de acontecer, vocês já adiantam porque sabem, reconhecem os valores deles, não reconhecem os valores da população, nem reconhecem os valores das nossas Forças de Defesa e Segurança. Então, levam nos a crer isso”, acrescentou, antes da ameaça velada.
“Por isso, queremos chamar atenção: por favor, não nos criem uma situação [ .... ]”, disse o governador, sem esclarecer a que “chamada de atenção” e a que “situação” se referia. Para Valige Tauabo, tudo indica que os jornalistas têm acordos com terroristas. “Porque, da mesma maneira que jornalista possa pensar e fazendo dessa forma, poderia fazer o contrário, até adiantar que «epah, o sítio tal, ali não vai valer apena eles se posicionar porque está lá a população firme para se defender» e, assim, o inimigo também não vai para lá. Mas não, o que estamos a acompanhar e a preocupação que está a existir dos nossos jornalistas residentes na nossa província, parece que essa parte aí é que importa, parece ter havido algum acordo com os terroristas”, disse.
E alertou: “Isso não fica bem, isso não fica bem”. Para Valige Tauabo, mesmo quando as autoridades dão informação, os jornalistas tratam-na à sua maneira, o que chamou de “maneira jornalisticamente”, mas sempre com um “cunho do mal”. “Nós trabalhamos convosco e nada está vedado para procurarem saber melhor [.....]. Mesmo quando nós damos alguma informação, fazem da vossa maneira, jornalisticamente, mas com um cunho do mal para a nossa província de Cabo Delgado, com um cunho do mal para a população de Cabo Delgado”, afirmou o governador, antes de questionar “o que está a acontecer?".
Mas Valige Tauabo não é o único dirigente ou alguém próximo do Governo a endurecer, nos últimos tempos, o discurso contra jornalistas que fazem cobertura independente ao conflito de Cabo Delgado. Aliás, no mesmo sábado, 17 de Fevereiro, uma publicação denominada “Notícias de Defesa”, que se identifica como um “Boletim Semanal sobre o combate ao terrorismo, em Moçambique”, divulgou um artigo intitulado “O Terrorismo e a Regulação dos Órgãos de Comunicação Social”. Embora pouco claro na sua sua argumentação, o texto do “Notícias de Defesa”, uma publicação que se destaca na divulgação de narrativas pró-governamentais sobre o conflito, parece ser a expressão de certos sectores no Governo interessados em voltarem a agravar o cerco contra os media que se destacam na cobertura independente da guerra de Cabo Delgado.
Enquanto isso, um dia antes, isto é, na sexta-feira, 16 de Fevereiro, tinha sido o administrador de Quissanga, Sidónio Mindo José que, ao desmentir a ocorrência de um ataque e ocupação da vila deste distrito de Cabo Delgado, referiu-se à criação de “notícias falsas sobre o terrorismo”, por jornalistas, com objectivo de “agitar as populações” e “traumatizar as comunidades”.
Posicionamento
O MISA Moçambique nota com bastante preocupação o surgimento de mais uma vaga de ameaças contra jornalistas que se dedicam à cobertura independente do conflito de Cabo Delgado. Pronunciamentos como os do governador Valige Tauabo devem ser considerados preocupantes, sobretudo num contexto em que a hostilidade das autoridades contra o jornalismo independente já levou a detenção de vários jornalistas e ao desaparecimento de pelo menos um repórter, em Cabo Delgado. Num país com uma forte cultura de autoritarismo e militarização, pronunciamentos como os do governador Tauabo podem encorajar a tomada de medidas de risco contra jornalistas, sobretudo pelo sector da defesa e segurança.
As recentes ameaças a jornalistas surgem numa altura em que a situação de segurança voltou a se degradar, com os grupos armados que actuam na província a protagonizarem uma série de ataques, sobretudo nos distritos do Sul da província e na zona costeira do distrito de Macomia, causando mortes e provocando mais uma crise humana, com deslocações forçadas da população. A história dos ataques de Cabo Delgado mostra que, nos momentos mais críticos do conflito, as autoridades moçambicanas encontram, no jornalismo, um dos elos mais fracos para atingir, muito por conta da necessidade de garantir baixo nível de prestação de contas sobre os verdadeiros acontecimentos.
Por isso, o MISA condena, de forma veemente, e desencoraja estas e quaisquer ameaças visando interferir e restringir o trabalho de profissionais de comunicação envolvidos na cobertura do conflito do Norte de Moçambique, o que é uma manifesta violação a todos os princípios da liberdade de imprensa. O MISA lembra que um dos papéis centrais do jornalismo, em sociedades democráticas, é reportar acontecimentos de interesse público, incluindo tragédias como a que se abate sobre Cabo Delgado, há mais de seis anos.
Reportar sobre ocorrência dos ataques não é reconhecer valores terroristas em detrimento de valores da população e das FDS, como sugere o governador de Cabo Delgado. É, pelo contrário, prestar um serviço público de interesse público, que é manter o país e o mundo e, em primeiro lugar, a população das zonas afectadas, informados sobre os acontecimentos à sua volta, ainda mais acontecimentos que colocam em causa vidas humanas.
Por isso, ao mesmo tempo que volta a condenar a violência armada perpetrada por grupos armados contra populações indefesas, e a solidarizar-se com as vítimas destas acções macabras, o MISA Moçambique reitera que, enquanto problema que afecta, gravemente, o Estado moçambicano, a situação de guerra, no Norte de Moçambique, deve ser objecto de reportagem e escrutínio pela comunicação social, independentemente dos gostos de quem quer que seja.
Mais ainda, a diversidade de linhas e abordagens editoriais dos órgãos de comunicação social faz parte do instituto de liberdade de imprensa e de expressão, constitucionalmente consagrado, na República de Moçambique, não devendo, de forma alguma, ser confundida com um “cunho do mal” para a população e a província de Cabo Delgado, conforme o governador Tauabo.
A terminar, o MISA entende que a crítica ao trabalho de jornalistas é crucial e pertinente para melhorar e aperfeiçoar a qualidade do trabalho que os profissionais do sector exercem. Por isso, a organização encoraja a todos os sectores da sociedade a escrutinar o trabalho dos media, mas desencoraja tentativas veladas de usar da crítica como “arma de arremesso” contra a liberdade de imprensa.
Maputo, 19 de Fevereiro de 2024